HISTÓRIA DO RISO E DO ESCÁRNIO

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Na Grécia arcaica, existia o mito de que o mundo havia sido criado após uma enorme gargalhada. Rir era, portanto, um ato que nos aproximava dos deuses. Escreve Georges Minois, que “em sua versão órfica ou em sua versão homérica – [esse mito] associa o riso, sob forma de zombaria, à sexualidade, à fecundidade e ao renascimento. Deméter “reinava” por seu sorriso, ele próprio provocado por um riso que sai da matriz corporal, do sexo feminino”. O riso da criação teria, então, saído da vagina da deusa Deméter. “Outros mitos associam o riso ao renascimento, ao retorno à alegria de viver”.[1]

Minois ainda faz uma observação interessante: “O riso, nos mitos gregos, só é verdadeiramente alegre para os deuses. Nos homens, nunca é alegria pura; a morte sempre está por perto, e essa intuição do nada, sobre o qual todos estamos suspensos, contamina o riso”.[2] Nesse sentido, o riso esconderia uma verdade obscura: o medo da morte e da efemeridade, que nos ronda desde o momento em que nascemos.

Justamente, por ser considerada uma força divina, alguns gregos achavam que o riso era difícil de ser controlado por nós, pobres mortais. Por ser divino, o riso estava presente em diversas festas dedicadas a divindades como Dionísio. E o que acontecia nessas festas? Havia muito vinho e nenhum desejo era reprimido. Homens se vestiam de mulher; mulheres se vestiam de homens; as pessoas usavam máscaras e se disfarçavam; os escravos davam ordens e eram servidos pelos senhores; um escravo era coroado o rei da festa e vivia uma semana farta. Era, portanto, um mundo às avessas.

Minois analisa as festas dedicadas às divindades na Grécia arcaica e ressalta que “inseparáveis da mitologia, as festas são, em geral, ocasiões de riso, riso coletivo e organizado.” […] “…nas festas gregas — dionisíacas do campo, as grandes dionisíacas, as bacanais, as leneanas, as tesmofórias ou as panateneias — têm todas em comum quatro elementos: “uma reatualização dos mitos, que são representados e imitados, dando-lhes eficácia; uma mascarada, que dá lugar, sob diversos disfarces, a rituais mais ou menos codificados; uma prática da inversão, na qual é necessário brincar de mundo ao contrário, invertendo as hierarquias e as convenções sociais; e uma fase exorbitada, em que o excesso, o transbordamento, a transgressão das normas são a regra, terminando em caçoada e orgia, presididas por um efêmero soberano que é castigado no fim da festa. A importância relativa desses elementos varia, mas quase sempre eles se combinam e estão presentes.”

Nessas festas, a população tinha a chance de entrar em contato com o seu lado mais instintivo e extravasar suas tendências primitivas e selvagens, ligadas ao caos que precedeu o mundo organizado pelas divindades. Só que, ao final das celebrações, o escravo coroado rei da festa era morto. A alegria dele durava pouco. A ordem precisava ser restabelecida. “O parêntese festivo do riso desenfreado serve, pois, à recriação do mundo ordenado e ao reforço periódico da regra.”[3] O riso tinha um gosto amargo no fim. A festa servia, afinal, para mostrar a importância da ordem frente ao caos. Repare como nessa época, o riso já estava associado ao caos, à loucura e aos desejos irrefreáveis da carne.

Minois destaca esse aspecto das festas: “Não se concebem mascaradas, travestimento, cenas de inversão, desordens e excessos sem o riso desbragado que, de alguma forma, imprime-lhes o selo de autenticidade. É o riso que dá sentido e eficácia à festa arcaica. Porém, essas festas têm uma função: reforçar a coesão social na cidade. Elas asseguram a perpetuação da ordem humana, renovando o contato com o mundo divino; e o símbolo do contato estabelecido com o divino é o riso que, como vislumbrado pelos mitos é um estado de origem e de iniciativa divina, comparável, em certos casos, ao transe”.[4]

Por mais que essas festas dessem às pessoas a oportunidade de extravasar comportamentos e desejos considerados inapropriados, esse riso nada tinha de revolucionário, era conservador e visava manter a ordem social. As festas serviam como uma forma de “exorcizar a desordem, o caos, os desvios, a bestialidade original. […] É uma espécie de reafirmação da ordem cultural e social, por meio da experimentação ritualística da desordem. […] O riso festivo é, ao mesmo tempo, a irrupção do caos e sua autodestruição”. 

Citando a interpretação que Konrad Lorenz dá para o riso em A Agressão Minois escreve que para o cientista “…o riso é uma ritualização do instinto de agressão que existe em cada um de nós; ele permite controlar e reorientar nossas tendências naturais para a brutalidade, a fim de tornar possível a vida social”.[5] Uma intepretação quase freudiana, aliás.

Porém, esse riso desbragado, por mais conservador que fosse, estava com os dias contados. Minois observa que “no fim do século v a.C., a atmosfera política muda. O riso agressivo, de tipo arcaico, o riso sem regras, que cobre o adversário de excrementos, começa a provocar reticências.” [6]

Certas manifestações por meio do riso passam a ser proibidas. “O riso e o ceticismo religioso começam a ser percebidos como fatores diluentes dos valores cívicos.” [7] Não é mais permitido rir-se de tudo e de todos. “Alcebíades faz aprovar uma lei que proíbe zombar abertamente de homens políticos no teatro.” [8]

Como observa Minois: “O crescente refinamento e os progressos do intelectualismo traduzem-se, a partir do século v a.C., por uma desconfiança clara em relação ao riso desenfreado, manifestação indecente de uma emoção primária, ainda próxima de um instinto selvagem, inquietante, que é preciso aprisionar, domesticar, civilizar.”[9]

Alguns filósofos mal-humorados como Platão, criticam até mesmo o riso das divindades: “…é preciso rechaçar o riso inextinguível dos deuses, esse riso que vem do além e pode levar o homem à demência.” [10] Para Platão, o riso ameaça a ordem social e está associado a um descontrole do corpo: espasmos ligados ao diafragma. Como já observado, a origem da palavra humor está associada aos fluidos que saem do corpo humano, portanto, rir seria o mesmo que salivar, vomitar e defecar. O riso era vulgar, indigno, grotesco. O riso precisava ser combatido.

Quanto mais intelectualizado nos tornamos, mais a razão foi valorizada em detrimento de tudo o que nos fazia lembrar o nosso lado selvagem, irracional e animal. Essa distinção ficou ainda mais clara a partir do mito da caverna de Platão.

Platão postulou que a nossa percepção da realidade era limitada — o que mais tarde a psicanálise e, tempos depois, a neurociência comprovariam ser verdadeiro. Para exemplificar sua teoria, Platão criou a seguinte imagem: resumidamente, somos como prisioneiros dentro de uma caverna de costas para a sua entrada. Acorrentados, não podemos mover nossas cabeças, o que nos obriga a olhar apenas para o fundo da caverna. O que enxergamos, portanto, são meras sombras que a luz que vem do lado de fora projeta dentro desse ambiente escuro. A partir dessa ideia, Platão postulou dois mundos: o mundo das ideias imutáveis e eternas, que estaria acima desse nosso mundo perene, mera sombra do mundo ideal. — Olha a dissonância cognitiva de novo aí, minha gente!

A partir desse pensamento de Platão, tudo o que estava ligado ao nosso mundo perene, era imperfeito se comparado ao mundo eterno das ideias. Nosso corpo fazia parte do mundo imperfeito. O riso estava ligado ao corpo. Já deu para perceber aonde vamos chegar?

O surgimento de uma nova comédia ajuda a civilizar o riso. Escreve Minois: Terminam os falos, os excrementos, as grosserias, as agressões verbais contra os políticos. A nova comédia, a néa, dirige-se a um público mais selecionado, mais culto, mais abastado, que agora paga seu bilhete de entrada e não vem para ver insultar os homens políticos, mas para apaziguar-se honestamente, diante de um espetáculo que corrobora as convenções sociais e exorciza o medo da subversão. Os domínios gêmeos da política e da obscenidade cedem lugar aos assuntos domésticos, às relações sentimentais, conjugais e familiares, em que a moral sempre se salva”.[11] E Minois arremata: “A comédia tem por função, em primeiro lugar, permitir ao público esquecer por um tempo suas inquietudes e espantar seus temores, apresentando-lhe um universo em que a ordem sempre acaba por ser restabelecida”. [12] Nesse sentido, o riso aceito é aquele que reforça as normas e pune as excentricidades e desvios. “O riso de bom tom é aliado das convenções, e a comédia permite dar conta dos interditos e ridicularizar os marginais, acatando as normas sociais”[13]. “O público pode liberar pelo riso aquilo que lhe provoca medo.” [14]

Com o surgimento do cristianismo, a dicotomia corpo versus ideia, logo evolui para um novo paradoxo: corpo versus alma. Corpo mortal, alma imortal. Mundo terreno versus o Paraíso sagrado post mortem. Com o cristianismo, o riso passa a ser diabólico. Isso é corroborado pelo fato de não haver relatos de nenhuma risada de Jesus na Bíblia.

E a história do riso segue dessa forma, ora sendo combatido, ora sendo aceito, mas sempre com ressalvas. Riso associado a vulgaridade, ao escatológico, ao grotesco, à loucura, ao diabólico. É, portanto, compreensível que muitas pessoas tenham dificuldade para entender a lógica do humor se a nossa cultura reprimiu a nossa risada e, mais do que isso, reprimiu o raciocínio que leva à comédia. Mas a forma como o sapiens evoluiu culturalmente se refletiu igualmente na maneira como evoluiu a nossa psique.

[1] Georges Minois, História do riso e do escárnio, p 25.

[2] IDEM. (p 27)

[3] IDEM. (p. 31)

[4] IDEM. (p. 30)

[5] IDEM. (p. 35)

[6] IDEM. (p. 40)

[7] IDEM. (p. 41)

[8] IDEM. (p. 41)

[9] IDEM. (p. 49)

[10] IDEM. (p. 49)

[11] IDEM. (p. 51)

[12] SAÏD, S. M. Trédé et A. Le Bouiluec, Histoire de la littérature grecque, Paris, 1997, p.302.

[13] Georges Minois, História do riso e do escárnio. (p. 51)

[14] SAÏD, S. “Sexo, amor e riso na comédia grega”. In: Le rire des anciens. Actes du Colloque International de Rouen et Paris. Paris: 1998.