A RELAÇÃO DOS CHISTES COM O INCONSCIENTE

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Em sua história evolutiva, o ser-humano se distinguiu das demais espécies pela especialização de seu cérebro, ou, dito de outra forma, pelo seu raciocínio lógico de um lado; e pela sua imaginação do outro. Tornou-se comum dizer que “o ser-humano é o animal que pensa”. Nossa evolução como espécie, de certa forma, significou negarmos cada vez mais o nosso lado irracional ou “animal”.

À luz da psicologia, porém, é sabido que a simples repressão dos nossos instintos e pensamentos insidiosos está associada à diversas neuroses. Deveríamos, sim, reconhecer o nosso lado bestial, ao invés de negá-lo, e a partir daí tentar integrá-lo à nossa psique.

Freud foi um dos primeiros caras que percebeu que existia algo além da nossa percepção consciente. Ele chamou essa área obscura da nossa mente de inconsciente. O inconsciente é uma espécie de depósito de ideias e desejos reprimidos por nossa razão consciente. Ou seja, tudo o que, culturalmente, é considerado inapropriado vai parar na lata de lixo do inconsciente.

Sob a ótica freudiana, poderíamos estabelecer uma relação entre nosso lado irracional e o nosso inconsciente. Segundo Freud, nosso humor se utilizaria, inclusive, dos mesmos mecanismos e recursos dos sonhos.

De fato, se a partir de Freud, formos contar a história da evolução de nosso riso desde a infância, ela se parecerá em muito com o resumo da história do riso que encontramos na exuberante obra de Georges Minois.

Segundo Freud, é durante à infância que determinados conteúdos, atitudes e pensamentos são reprimidos pelos adultos e demais figuras de autoridade, buscando refúgio em nosso inconsciente.

O infantil é, com efeito, a fonte do inconsciente; os processos inconscientes do pensamento não são senão aqueles produzidos única e simplesmente na infância. O pensamento que mergulha no inconsciente com vistas à formação do chiste está apenas procurando pelo velho lar de seu jogo primitivo com as palavras. O pensar é recolocado por um momento no estágio infantil, a fim de apoderar-se novamente da fonte infantil de prazer.[1]

Apesar da maioria das pessoas relacionar imediatamente as teorias de Freud com a repressão de cunho sexual, ao tratar do chiste, Freud vai bem além disso. Ao contrário do que muita gente pensa, essa repressão não se limita aos desejos sexuais e à nossa agressividade. Segundo Freud: “Na época em que a criança está aprendendo a manejar o vocabulário de sua língua materna, ela tem grande prazer em “experimentar brincando” com esse material, e junta as palavras, sem ligá-las ao significado, para obter um efeito prazeroso do ritmo ou da rima”.[2] Trocadilhos e inocentes jogos de palavras são bons exemplos de como as crianças usam o vocabulário da língua materna como matéria prima para seu divertimento.

Entretanto, a norma culta exige que as palavras façam sentido e logo essa brincadeira precisa ser abandonada, como observa Freud mais adiante: “Esse prazer lhe é gradativamente negado, até que só lhe restem, como permitidas, as conexões de palavras dotadas de sentido”. [3] A criança enxerga e experimenta a graça naquilo que não faz sentido para a nossa razão objetiva, da mesma forma que rimos de esquetes de humor do Monty Phyton ou do Porta dos Fundos. Entretanto, aqueles que se tornaram adultos e enterraram para sempre o prazer de brincar com o nonsense talvez não consigam ver a mesma graça nesse tipo de brincadeira. Freud prossegue: “Nos anos seguintes ainda aparecem alguns esforços para sair das limitações aprendidas no uso das palavras: estas são deformadas por sufixos especiais, suas formas são modificadas através de certas estratégias (reduplicações, gíria infantil), línguas próprias chegam a ser inventadas para uso com os companheiros de brincadeiras.”[4]

Você lembra da língua do “p”? Pois é. É uma maneira da criança se livrar da repressão imposta ao uso das palavras. É muito difícil para o nosso cérebro e para a nossa psique renunciar a uma fonte de prazer. Por isso a criança tenta encontrar outra forma de se divertir com a sua língua materna. Freud escreve: “que, qualquer que tenha sido o motivo que levou a criança a começar esses jogos, no seu desenvolvimento posterior ela os faz com a consciência de serem absurdos e encontra o prazer na atração do que é proibido pela razão. Ela agora usa o jogo para escapar à pressão da razão crítica”. [5]

Se no começo a criança gosta de brincar com a sonoridade das palavras, sem importar-se com o sentido das mesmas, quando isso lhe é proibido, ela encontra o prazer justamente em desafiar essa proibição da razão crítica. O humor sempre encontrou no que é proibido uma fonte de matéria-prima. A criança, entretanto, que cresceu acreditando em mitos como fadas, faunos, duendes, coelhinho da Páscoa e Papai Noel, ainda tem que aprender a separar o que é real do que é ilusão. Assim, de repente, a educação rouba das crianças o direito à fantasia. Como escreve Freud: “Bem mais violentas, porém, são as limitações que têm de abrir espaço na educação para o pensar correto e a separação, na realidade, do verdadeiro e do falso”.

A esse tipo de chiste que brinca com o absurdo, o erro de raciocínio, a representação pelo oposto, Freud chamou de chiste abstrato ou inofensivo. É aquela piada cujo prazer está ligado à técnica do chiste como nesses exemplos dados por Freud.

“Um comerciante de cavalos recomenda ao cliente um cavalo de montaria:

— ‘Se você montar esse cavalo às 4 da manhã, estará em Pressburg às 6h30’.

— ‘E o que vou fazer em Pressburg às 6h30 da manhã?’”

“Um senhor adentra uma confeitaria e pede uma torta; mas logo a devolve e pede, em lugar dela, um copinho de licor. Depois de bebê-lo, ele quer ir embora sem ter pagado. O dono da confeitaria o segura.

— ‘O que você quer de mim?’

— ‘Você tem que pagar o licor.’

— ‘Mas eu dei a torta por ele.’

— ‘Você também não pagou por ela.’

— ‘Mas eu não a comi.’”

Existiria ainda um segundo tipo de chiste, mais provocativo e audacioso. Freud o classificou como chiste tendencioso, que “se coloca a serviço de duas tendências apenas, as quais podem ser unificadas sob um mesmo ponto de vista; ou ele é um chiste hostil (que serve à agressão, sátira, defesa), ou um chiste obsceno (servindo ao desnudamento).” Afinal, crescemos e precisamos conter a nossa agressividade e o nosso impulso sexual. O chiste tendencioso cumpre, portanto, a função de driblar a repressão e compensá-la através do prazer do riso. Freud dá alguns exemplos desse tipo de chiste ou piada.

“O Sereníssimo está fazendo uma viagem por suas terras e percebe um homem, no meio da multidão, que se parece muito consigo próprio. Ele lhe faz um aceno e pergunta:

— ‘Por acaso sua mãe já serviu no Palácio?’

— ‘Não, Alteza’, responde ele, ‘mas meu pai, sim.’”

Resumindo, então, segundo Freud, o chiste funciona em 3 níveis. Ao desafiar a razão: o chiste se utiliza da incongruência ao propor jogos aparentemente absurdos ou sem sentido. Ao desafiar o juízo crítico (nossa habilidade de julgar e avaliar a realidade objetiva e de distinguir entre o que é verdadeiro e o que é falso; diferenciar o mundo real do mundo da fantasia e da ilusão): o chiste usa da incongruência agora misturando realidade e fantasia (igualmente como o fazem os sonhos). E ao desafiar a repressão (seja ela social ou sexual), diante de um obstáculo para atingir o prazer, o chiste subverte tal repressão encontrando um caminho alternativo: o riso.

O chiste ofensivo é também uma maneira de rirmos da degradação do outro, normalmente, uma figura de autoridade ou representante de uma instituição poderosa ou de prestígio, que em situação normal, não poderíamos desafiar.

Pra concluir essa parte, Freud escreve: “A razão, o juízo crítico, a repressão: eis os poderes contra os quais ele [o chiste] luta em sequência”.

Freud, entretanto, foi além. Ele identificou nos processos usados para criação dos chistes, os mesmos processos que aparecem nos sonhos.  Dois desses processos se destacam: a alusão e a condensação.

A alusão é quando substituímos uma coisa por outra. No sonho, o seu chefe não é necessariamente o seu chefe. Ele pode estar simbolizando uma figura de poder, como o seu pai, por exemplo. Ou um lado seu que você não gostaria de ver se estivesse acordado e consciente.

Da mesma forma, em um sonho você pode ser você e outra pessoa, ao mesmo tempo. É o que Freud chama de condensação: quando uma figura pode representar muitas figuras simultaneamente. Isso por acaso não te lembra “as duas realidades que coexistem?” A dualidade do animal-racional?

A contradição e a incongruência fazem parte da natureza do sapiens, e da mesma forma, da natureza das verdades ou mitos que o sapiens inventou para controlar o seu lado besta-fera e viver em sociedade.

A partir das descobertas de Freud, uma segunda dualidade fica evidente: nosso lado consciente versus nosso lado inconsciente. Se a lógica da comédia se relaciona à lógica do inconsciente, ou à lógica dos sonhos, dá pra entender ainda mais por que nem todo mundo entende como funciona uma piada. Muita gente ainda hoje não admite a existência do inconsciente!

[1] Freud, Sigmund. Freud (1905) – Obras Completas volume 7 (Obras Completas de Freud)

[2] IDEM. (p. 124).

[3] IDEM. (p. 124).

[4] IDEM.  (p. 124).