A FICÇÃO NOS AJUDOU A EVOLUIR

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Antes de começar a explicar como funciona a lógica do humor, eu preciso que você entenda como o homo sapiens evoluiu e se distinguiu das demais espécies, que eram bem mais fortes que nós.

Segundo o filósofo e historiador israelense Yuval Noah Harari, autor do livro “Sapiens, uma breve história da humanidade”, o sapiens (ou seja, nós seres-humanos) saltou para o topo da cadeia alimentar quando, após a Revolução Cognitiva (o surgimento da linguagem), ele inventou a ficção. Harari escreve, que “…a ficção nos permitiu não apenas imaginar coisas, mas também fazer isso coletivamente”.

E por que inventar histórias nos deu uma vantagem estratégica em relação às demais espécies? Ainda segundo Harari, “qualquer cooperação humana em larga escala — seja um Estado moderno, uma igreja medieval, uma cidade antiga ou uma tribo arcaica — está enraizada em mitos compartilhados que só existem na imaginação coletiva das pessoas.” [1] Se era difícil pra um sapiens enfrentar um mamute mano a mano, isso mudava de figura quando ele podia contar com a ajuda de mais 500 sapiens, trabalhando cordenadamente.

Harari escreve: “Não há deuses no universo, não há nações, não há dinheiro, não há direitos humanos, não há leis e justiça fora da imaginação compartilhada de seres humanos”.  Harari está dizendo que todos esses conceitos, do dinheiro à justiça, não existem a priori na natureza. Eles são invenções da imaginação do sapiens.

“As pessoas aceitam com facilidade que “tribos primitivas” consolidaram sua ordem social por acreditar em fantasmas e espíritos, reunindo-se nas noites de lua cheia para dançar em volta de uma fogueira. O que não percebemos é que nossas instituições modernas funcionam exatamente nessas mesmas bases. Tome como modelo o mundo corporativo: os executivos e os advogados modernos são, na verdade, feiticeiros poderosos. A diferença principal entre eles e os pajés é que os advogados modernos contam histórias ainda mais estranhas”. [2]

A partir do momento em que o sapiens cria a linguagem e inventa histórias que são compartilhadas por outros sapiens, duas realidades passam a coexistir: a) a realidade objetiva e concreta: ou seja, tudo aquilo que nós vemos e experimentamos por meio dos nossos sentidos conscientes (visão, audição, paladar, tato e olfato); b) a realidade ficcional: que é a realidade imaginada dos deuses, das nações e das corporações.

Conceitos como ordem, hierarquia, justiça, pecado, etiqueta e outros mais ajudaram a civilizar o sapiens para que vivesse em sociedade, reprimindo nosso lado animal, primitivo e selvagem, mesmo que no fundo, nunca tenhamos deixado de ser animais e este paradoxismo está na raiz de muitas das neuroses que lotam os consultórios de psicanálise.

A maioria das pessoas não se dá conta de que, hoje, damos tanto ou mais valor pra realidades inventadas pelo sapiens como o dinheiro, as ações na bolsa de valores, as religiões e os direitos humanos do que pra realidade objetiva dos rios, das montanhas, ou da gravidade. Nós crescemos dentro desse contexto e naturalizamos o que foi arbitrado por seres-humanos como nós, como se esses conceitos fossem naturais e imutáveis. Eles não são e, como tudo que é inventado pelo sapiens, estão repletos de contradições internas, como ressalta Harari.

“Diferente das leis da física, que estão livres de inconsistências, toda ordem feita pelo homem está repleta de contradições internas. As culturas estão sempre tentando conciliar tais contradições — e esse processo alimenta as mudanças”.[3]

Mas criar e acreditar em conceitos repletos de contradições não é necessariamente ruim, pelo contrário. “Assim como a cultura medieval não conseguiu unir o código da cavalaria com o cristianismo, o mundo moderno também não consegue conciliar liberdade e igualdade. Mas isso não é um defeito. Essas contradições são parte inseparável de todas as culturas humanas. Na verdade, são os motores do desenvolvimento cultural, responsáveis pela criatividade e pelo dinamismo da nossa espécie. Assim como quando duas notas musicais dissonantes tocadas juntas forçam uma música a avançar, pensamentos, ideias e valores discordantes nos fazem pensar, reavaliar e criticar. A consistência é o lugar das mentes sem-graça”.[4]

São essas contradições internas, que nos obrigam a discutir esses conceitos. A discussão gera mudanças, que fazem surgir novos conceitos, com novas contradições, novas discussões e novas mudanças, servindo, portanto, como o motor propulsor para transformações constantes. Não haveria evolução se tudo fosse estático.

“Se tensões, conflitos e dilemas insolúveis são o fermento de todas as culturas, um ser humano que pertence a determinada cultura deve ter, ele próprio, crenças contraditórias e valores incompatíveis. Isso é uma característica tão essencial de qualquer cultura que até mereceu um nome: dissonância cognitiva. A dissonância cognitiva é com frequência considerada uma falha da psique humana: na verdade, constitui um ativo vital. Se as pessoas fossem incapazes de manter crenças e valores contraditórios, provavelmente seria impossível construir e manter qualquer cultura humana”. [5]

Se não fosse a dissonância cognitiva, ou, em outras palavras, se não fôssemos capazes de enxergar essas duas realidades a concreta e a ficcional e acreditar em conceitos contraditórios, não existiria nem a comédia, nem o humor porque, como veremos mais adiante, a experiência do humor depende em muito de algo chamado de sinergia cognitiva, que nada mais é do que enxergar, ao mesmo tempo, duas ideias ou eventos contraditórios.

Até esse ponto, a Revolução Cognitiva ou a invenção da linguagem simbólica pelo sapiens foi um fator determinante para o surgimento da comédia e do humor. Entretanto, a partir do momento em que o processo civilizatório precisou reprimir e domar o nosso lado bestial, passamos a viver uma segunda dualidade: somos bichos, mas somos “civilizados”; temos em nosso cérebro um lado primitivo e selvagem, que reage de forma instintiva e irracional quando somos confrontados com algum perigo; mas socialmente devemos agir de forma racional e civilizada, controlando as nossas reações e emoções.

O que tudo isso tem a ver com o riso? Tem tudo a ver por que o riso é uma dessas reações que o homem deveria controlar em sociedade. Pense no conceito do politicamente correto. Esse conceito define do que não podemos rir; ele, portanto, reprime determinado tipo de risada, que passa a ser considerada ofensiva e opressora. É o riso que humilha e deprecia minorias, por exemplo. Mas a repressão ao riso começou bem antes disso e remonta à Grécia antiga. É o que veremos a seguir.

[1] Harari, Yuval Noah. Sapiens (Nova edição) Companhia das Letras. (p. 44).

[2] IDEM. (pp. 44-45).

[3] IDEM. (p. 240).

[4] IDEM. (p. 242).

[5] IDEM. (p. 243).