Quem nunca teve medo de ficar louco? Em nosso processo civilizatório, aprendemos a temer a loucura e não por acaso. Ao longo da história, ela foi usada como a desculpa perfeita dos poderosos para desqualificar e calar opositores segredando-os em manicômios, bem longe dos olhos da sociedade.
Da mesma forma, a arte sempre esteve associada à uma boa dose de “loucura” e irracionalidade. Que criança nunca foi confrontada com frases que tratam seu lado artístico de forma pejorativa? Nesse sentido, “Fazer arte” passa a ser sinônimo de “fazer bagunça”. São poucos os pais que desejam ardentemente ter um filho artista, já que as artes, além de associadas à “sandice”, agregam em torno de sua imagem os preconceitos mais diversos, entre eles: miséria, depravação, libertinagem, homossexualismo, descontrole e uma extensa lista de vícios. Quem enxerga a arte desta forma, vislumbra o caminho do artista como um mar de desilusões — como se o operário de uma fábrica gozasse de boa vida; como se todos os advogados fossem felizes; como se pessoas de posses não pudessem ser miseravelmente deprimidas; como se conquistas exteriores fossem a garantia de uma paz interior. Por isso, durante a infância somos instados a crescer e nos “tornar sérios”, como se simplesmente isso fosse garantia de uma vida plenamente satisfatória; como se amadurecer fosse o mesmo que ser aceito; e como se mostrar um semblante carrancudo fosse sinônimo de responsabilidade.
De certa forma, o que esse discurso esconde é um medo latente de uma desagregação social por conta da capacidade que só o artista tem de desvendar mecanismos implícitos, que existem apenas para nos tornar mais dóceis e fáceis de ser controlados por àqueles que, à sua época específica, detém o poder. Tanto isso é verdade, que a definição de loucura nunca foi a mesma ao longo da história. Ela muda ao bel prazer daqueles que controlam o discurso: estejam eles representados pelo pajé, pelo senhor feudal, pela igreja, pelas monarquias absolutistas, pela burguesia, pelo capital, pela academia, pelas ciências, pela mídia ou pelas big techs. Escreve Michel Foucault: “Existe em nossa sociedade outro princípio de exclusão: não mais a interdição, mas uma separação e uma rejeição[1]. Penso na oposição razão e loucura. Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo; pode ocorrer também, em contrapartida, que se lhe atribua, por oposição a todas as outras, estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber.”[2]
Curiosamente, cultuar a razão nunca garantiu que, nosso lado primitivo, animal e irracional eclodisse com uma força de destruição avassaladora. Escreve Carl Gustav Jung: “Nossas vidas são agora dominadas por uma deusa, a Razão, que é a nossa ilusão maior e mais trágica. É com a ajuda dela que acreditamos ter “conquistado a natureza”. [3]
A verdade é que, à luz da psicologia, reprimir o nosso lado animalesco é o caminho mais fácil rumo à insanidade que tanto tememos. Não é uma simples coincidência que o ser-humano moderno seja vítima de inúmeras neuroses e síndromes, que se entupa de ansiolíticos e antidepressivos para conseguir levantar da cama e encarar a rotina estafante do dia a dia até a sua inevitável morte. O ser-humano é incapaz de viver uma vida sem significado e não se tornar um doente da alma.
Uma das formas pelas quais a humanidade tem conseguido seguir em frente, apesar de todos os pesares, é o humor. No entanto, é justamente a risada uma das expressões humanas mais ligadas à “loucura”. Em Da essência do riso, Baudelaire escreve que “o riso é uma das expressões mais frequentes e mais numerosas da loucura.” E, notem, o poeta francês estava longe de ser um crítico das risadas.
O fato é que a comédia, hoje tão popular e lucrativa, nunca foi um consenso. Em História do riso e do escárnio, Georges Minois descreve ao longo de mais de 600 páginas como o riso sempre teve defensores apaixonados e críticos ferrenhos, desde a Grécia arcaica.
“Muitos homens, para fazer rir, recorrem ao prazer da zombaria. Pessoalmente, detesto esses ridículos cuja boca, por não ter sábios pensamentos para expressar, não conhece freio”, escreveu Eurípides em um fragmento de Melanipeia.
Platão foi outro forte crítico do riso. Em A República ele escreve: “aquele que tentasse suscitar o riso, em detrimento de tudo que não seja loucura e vício, certamente tem por objetivo outra coisa que não o bem.”
No capítulo 4 de seu livro Humor, o papel fundamental do riso na cultura, Terry Eagleton faz um breve resumo da história do humor e destaca: “A república, de Platão, é severamente contrária a expor os cidadãos ao ridículo e se contenta em abandonar a comédia em grande parte aos escravos e estrangeiros. A zombaria pode ser socialmente disruptiva e o abuso verbal pode ser perigosamente divisor. O cultivo do riso entre a classe dos guardiões foi severamente desencorajado, junto com imagens de deuses ou heróis risonhos.”
Minois cita os estoicos: “pessoas sérias” que “não riem e mostram-se sensíveis à zombaria dos outros.” Um deles, Epicteto, escreve: “Evita também fazer rir. Essa é uma maneira de deslizar para a vulgaridade e, ao mesmo tempo, de perder o respeito que teus vizinhos têm por ti.”
Para Aristóteles, que escreve brevemente sobre o riso em sua Poética e Ética em Nicômano o riso deriva de um “defeito e uma feiura sem dor nem dano” e a comédia é um gênero inferior à tragédia. Enquanto a primeira representa os homens piores do que eles são, a segunda os representa superiores aos homens reais.
Na Idade Média, apesar de se rir bastante, o riso era comumente associado ao diabo. “Os pais da Igreja viram no riso um fenômeno diabólico, ligado à decadência humana”, observa Georges Minois, que ainda cita essa singela descrição da canonizada Santa Hildegarde: “o homem que ri não é mais que uma bexiga que se esvazia, é o jato de um falo que ejacula às sacudidelas”. E prossegue: “o corpo é sacudido pelo riso como pelos movimentos da cópula e, no momento do maior prazer, o riso faz jorrar lágrimas como o falo faz sair o esperma”[4]. Que meiga!
Saltando muitos séculos no tempo, Hegel é outro mal-humorado. George Minois escreve que “a ironia lhe é insuportável porque ele se prende a tudo o que é nobre, divino e sério; ela arruína a essencialidade e torna impossível qualquer construção intelectual”.
Sintoma de “insanidade” e “irracionalidade”, o riso deixaria escapar o nosso lado animal e primitivo. Se minha teoria estiver correta, este seria um dos motivos das comédias serem tão menosprezadas artisticamente (tirando o fato evidente de que muitas comédias não cumprem a sua função como arte – que na minha opinião seria descortinar a verdadeira loucura escondida por trás de comportamentos aparentemente normais).
Diante de tudo isso, não é de se espantar que em busca de uma vida bem-sucedida, as pessoas tornem-se mais taciturnas e se esqueçam das lições que a comédia, o humor e as risadas nos são capazes de ensinar. Não é de se espantar que executivas e executivos em cargos proeminentes tenham desaprendido a rir — quando “saber rir” em minha compreensão, nada mais é do que reconhecer a nossa própria humanidade. É compreensível, até porque, apesar de rir ser uma reação quase instintiva do ser-humano, um número bem reduzido de pessoas sabe exatamente por que ri — o que não deixa de ser um tanto assustador.
Como eu já observei e muitos hão de concordar, poucas coisas são mais difíceis de entender do que a comédia. Se você já teve que explicar uma piada para alguém, entende do que eu estou falando. Eu passo por isso há mais de trinta anos porque como escritor preciso vender as minhas ideias para executivos que não sabem rir.
Não é culpa deles. Até bem pouco tempo, pensava-se que pessoas concretas, totalmente lógicas e objetivas, voltadas para números eram os melhores profissionais para cargos de chefia e liderança. Entretanto, essas características lembram mais uma máquina, do que propriamente um ser humano — mas vivemos em uma sociedade em que o robô é enaltecido em detrimento do que é humano, empurrando cada vez mais para o inconsciente características que retornam de formas irracionais e destrutivas.
Parecia que o surgimento das grandes empresas de tecnologia como Apple, Microsoft e depois Facebook e Google, entre outras, criadas “no fundo de garagens” e lideradas por jovens ousados, derrubaria esse mito por terra. Era só uma impressão. As empresas continuam a ser lideradas por homens (e algumas poucas mulheres) frios e calculistas, que buscam o lucro a qualquer custo, mas cuja capacidade criativa é praticamente nula. Sob pressão contínua por resultados, essas pessoas repetem fórmulas prontas como papagaios e sofrem burnouts quando, fatalmente, se veem diante de situações completamente inesperadas (ao menos para seres-humanos que acreditam falsamente que a vida tem alguma lógica). Tornam-se, a partir de então, personagens de comédia.
Isso quer dizer que o pensamento lógico e a criatividade não podem caminhar juntos? Evidentemente que não, como Carl Gustav Jung observou décadas atrás (apesar de infelizmente, poucas pessoas terem se dado conta disso até hoje). “Muitos artistas, filósofos e mesmo cientistas devem suas melhores ideias a inspirações nascidas de súbito do inconsciente. A capacidade de alcançar um veio particularmente rico desse material e transformá-lo de maneira eficaz em filosofia, em literatura, em música ou em descobertas científicas é o que comumente chamamos genialidade.”[5]
Atualmente, descobertas da neurociência validam o que a psicanálise e a psicologia já haviam mostrado mais de um século antes, fornecendo um vasto material capaz de dobrar o mais cético dos homens puramente lógicos.
“Insight é o que acontece quando não temos ideia de como resolver um problema e, ao contrário, devemos contar com as respostas que surgem em nossa cabeças sem motivo aparente”. [6] Quem escreveu essas linhas não foi Jung, mas o neurocientista estadunidense Scott Weems, que complementa mais adiante: “Algumas conexões entre insight e humor podem já ser aparentes, como a estreita relação que ambos partilham com o prazer. Nós gostamos de encontrar soluções, seja na forma piadas ou problemas de insight”.[7] “A explicação é para a cognição o que o orgasmo é para a reprodução” observou a psicóloga da Universidade de Berkeley, Alison Gopnik. Ser sério, ao contrário do que muitos podem pensar, pode ser uma pedra no sapato para quem está em busca de ideias criativas e “fora da caixa”.
Por que entender a comédia pode ser tão difícil? Eu já dei pistas importantes. Mas Henri Bergson já havia matado a charada quando em 1900 publicou três ensaios sobre o riso. Bergson celebrou Don Quixote de Cervantes — que hoje certamente seria diagnosticado como esquizofrênico — como a personagem mais emblemática da comédia e traçou um paralelo entre a lógica do riso e a lógica dos sonhos.
“Há, portanto, uma lógica da imaginação que não é a lógica da razão, que chega até mesmo a se opor a ela e que a filosofia deverá levar em conta, não apenas no estudo do cômico, mas em outras investigações de mesmo tipo. Trata-se de algo como uma lógica do sonho[8], de um sonho que não esteja inteiramente sob os caprichos da fantasia individual, mas que seja sonhado por toda a sociedade[9]. Para reconstituí-la será necessário um esforço de tipo bem particular, pelo qual se suspenderá a camada exterior de juízos bem definidos e de ideias solidamente estabelecidas, para ver correr no fundo de si mesmo, como um lençol de água subterrâneo, certa continuidade fluida de imagens que entram umas nas outras. Interpenetração de imagens que não ocorre por acaso, mas obedece a leis ou, sobretudo, a hábitos, que são para a imaginação aquilo que a lógica é para o pensamento.”
Bergson reforça essa ideia em mais dois momentos: “O absurdo cômico é de mesma natureza que aquele dos sonhos.” E mais adiante escreve: “…qualquer jogo de ideias pode nos divertir, desde que nos lembre, de forma mais ou menos aproximada, o jogo do sonho. Notemos, em primeiro lugar, um certo relaxamento geral das regras do raciocínio. Os raciocínios dos quais rimos são aqueles que sabemos que são falsos, mas que poderíamos tomar por verdadeiros se os encontrássemos em um sonho.” [10]
Coincidentemente, no mesmo ano da publicação de O Riso Freud publica A Interpretação dos Sonhos, que viria a mudar completamente os rumos da psicologia. Obviamente, Bergson não poderia ter lido Freud antes de escrever seus ensaios sobre o significado do cômico, mas Freud não apenas leu Bergson como o cita em sua obra posterior publicada em 1905 Os Chistes e sua relação com o inconsciente em que relaciona — agora de maneira mais profunda — os mecanismos dos sonhos com os mecanismos que provocam as risadas.
Grosso modo, para Freud, os sonhos seriam uma maneira do inconsciente driblar as barreiras da repressão do superego para trazer desejos reprimidos ao nível consciente. Os chistes (as frases espirituosas), por sua vez, usariam de mecanismos próximos aos utilizados pelo sonho, para driblar as barreiras que se interpusessem no caminho da realização de um prazer. “O sonho serve sobretudo para nos poupar do desprazer, e o chiste, para adquirirmos prazer”[11] De certa forma, Freud estava corroborando um raciocínio antes intuído por Bergson, que ainda não conhecia a teoria de Freud sobre o inconsciente.
“O prazer do chiste nos pareceu proceder de um gasto de inibição economizado; o do cômico, de um gasto de representação (de investimento) economizado; e o do humor, de um gasto emocional economizado. Nesses três modos de trabalhar do nosso aparato psíquico, o prazer brota de uma economia; os três concordam no fato de constituírem métodos para reconquistar da atividade psíquica um prazer que se perdeu, na verdade, pelo próprio desenvolvimento dessa atividade. Pois a euforia que buscamos atingir por essas vias não é outra coisa senão o ânimo de uma época da vida em que costumávamos realizar nosso trabalho psíquico com bem pouco gasto: o ânimo de nossa infância, quando não conhecíamos o cômico, não éramos capazes de fazer chistes e não precisávamos do humor para nos sentirmos felizes na vida”.[12]
Assim como Freud, Bergson enxergava nos jogos e brinquedos da infância o surgimento de mecanismos de geração do riso. “Certos motivos de prazer da criança parecem ter se perdido para nós, adultos, mas percebemos, nas mesmas circunstâncias, o senso “cômico” como substituto para isso que se perdeu.” [13]
Carl Gustav Jung, que havia sido pupilo de Freud, mas rompera com ele em 1913 ao publicar Transformações e símbolos da libido, aprofunda a visão sobre o inconsciente e cria o conceito dos arquétipos e do inconsciente coletivo. Acho que só esse preâmbulo é capaz de explicar o preconceito e o medo que muitas pessoas alimentam em relação à comédia já que esta tem relação íntima com algo que provoca tanto ou maior temor no homem moderno que a loucura: o inconsciente. É, portanto, no inconsciente que iremos encontrar as respostas para entender e desvendar a comédia, assim como é igualmente nos recônditos da mente que se encontra o caminho para a genialidade e a criatividade.
Para se fazer comédia é preciso esquecer a lógica e o bom senso e enterrar o pé na “sandice”. No entanto, a perda da razão associada à loucura faz arrepiar os pelos das genitálias de quem foi educado para acreditar apenas em números e desprezar suas intuições e quaisquer outros tipos de misticismos e bruxarias.
A neurociência, entretanto, já provou que rir faz bem à saúde. E não apenas isso, entender uma piada é sinal de inteligência já que os mecanismos que geram a piada e o insight estão intimamente relacionados. Afinal de contas, o que seria o insight se não apenas uma forma mais empolada de denominar e nossa velha e boa intuição?
[1] O grifo é meu.
[2] Foucault, Michel. A ordem do discurso (Leituras filosóficas) (pp. 7-8).
[3] Jung, Carl Gustav. O homem e seus símbolos (pp. 202-203).
[4] Moulinier, L. “Quando o maligno faz graça. O riso na Idade Média visto depois da hagiografia”
[5] Jung, Carl G.; Henderson, Joseph L.; von Franz, M.-L.; Jaffé, Aniela; Jacobi, Jolande; Freeman, John. O homem e seus símbolos (p. 59).
[6] Weems, Scott. Há! A Ciência do Humor.
[7] Weems, Scott. Há! A Ciência do Humor.
[8] O grifo é meu.
[9] O grifo é meu, e veja como Bergson tangencia o conceito de inconsciente coletivo nessa observação.
[10] Bergson, Henri. O Riso.
[11] Freud, Sigmund. Freud (1905) – Obras Completas volume 7 (Obras Completas de Freud) (p. 177).
[12] Freud, Sigmund. Freud (1905) – Obras Completas volume 7 (Obras Completas de Freud) (pp. 229-230).
[13] Freud, Sigmund. Freud (1905) – Obras Completas volume 7 (Obras Completas de Freud) (pp. 219-220).