TEORIAS DA INCONGRUÊNCIA

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As teorias da superioridade foram amplamente aceitas para explicar o humor como deboche e zombaria dos defeitos alheios, contanto que estes não provocassem dor ou a nossa compaixão. Essa crença durou bastante tempo, até que, como escreve Daniel Martins de Barros em Rir É Preciso, o filósofo Francis Hutchenson fizesse uma observação bem pertinente. “Se o que nos faz rir é o sentimento de superioridade, por que rimos mais quando vemos um animal agindo de forma parecida com um humano do que quando eles simplesmente agem como animais? Teoricamente, ficamos mais acima deles na segunda situação, mas quando nos imitam, eles diminuem um pouco essa distância. Deve haver algum elemento além da percepção de superioridade”[1]

Francis estava certíssimo. A partir daí, abriu-se caminho para que uma série de novas teorias surgisse tentando explicar o riso para além da zombaria. Um dos maiores defensores da incongruência como fator primordial para nos fazer rir é o filósofo Emmanuel Kant. Ele escreve: “Em tudo o que gera um riso convulsivo deve haver algo absurdo (em que o entendimento, portanto, não possa encontrar satisfação). O riso é um afeto surgindo da súbita transformação de uma tensa expectativa em nada.”[2]

Segundo Kant, portanto, quando uma tensão e expectativa são criadas para, de repente, sermos tomados de surpresa por algum absurdo que foge ao nosso entendimento ou compreensão lógica, nossa reação natural é rir. Se levarmos em consideração o que escreve Yuval Noah Harari sobre a dissonância cognitiva não será difícil perceber o rico material a ser explorado pelo humor nas contradições internas próprias de toda a ordem criada pelo sapiens.

Groucho Marx era um mestre em explorar tais contradições. O casamento era um de seus alvos preferidos como atestam as piadas a seguir:

“O casamento é uma instituição maravilhosa, mas quem gostaria de viver em uma instituição?”

“Fui casado por um juiz. Eu deveria ter pedido um júri.”

“Um brinde às nossas esposas e namoradas… que elas nunca se conheçam!”

“O casamento é a principal causa do divórcio”

Depois de Kant, Arthur Schopenhauer também dedicou um pouco do seu precioso tempo para entender o riso. Como observa Georges Minois, em O mundo como vontade e como representação Schopenhauer “se entrega a um exame aprofundado, quase clínico, do mecanismo do riso”. Schopenhauer postula que “o riso não é outra coisa senão a falta de conveniência — subitamente constatada — entre um conceito e os objetos reais sugeridos por ele, seja de que forma for; e o riso consiste precisamente na expressão desse contraste.”

Vamos nos deter um pouco nesta frase intrincada: “a falta de conveniência entre um conceito e os objetos sugeridos por ele”. Falta de conveniência é uma forma elegante de dizer “incongruência” ou “falta de sentido”. Ora, qualquer conceito nos remete a uma série de ideias ou objetos reais. No entanto, o conceito que nos faz imaginar objetos incongruentes, absurdos ou sem sentido nos faz rir.

Analisemos como exemplo a seguinte frase de Groucho Marx: “O casamento é a principal causa do divórcio”. Quando ouvimos esse conceito pela primeira vez ele parece conter certa lógica porque só se divorcia quem está casado, portanto, para existir o divórcio, precisa haver antes o casamento. O conceito, entretanto, não para de pé. O enunciado contém uma incongruência. As pessoas não se divorciam porque estão casadas, elas se divorciam porque deixaram de amar seu cônjuge ou algo do gênero. Poderíamos apontar como a principal causa do divórcio o desamor ou a incompatibilidade de gênios, não o casamento. O riso consiste precisamente na expressão deste contraste: casamento versus divórcio; casamento = divórcio.

Schopenhauer está tão certo de sua teoria que sequer perde tempo com exemplos ou mais explicações: “Eu não me deteria aqui a contar anedotas para apoiar minha teoria, porque ela é tão simples e tão fácil de compreender que não há necessidade disso”.[3] Sim, Schopenhauer era também um tanto arrogante.

Como observa Georges Minois, Schopenhauer volta a tratar do riso em outra obra, Suplementos. Desta vez, o filosofo escreve que “a origem do ridículo está sempre na generalização paradoxal e, em consequência, inesperada de um objeto sob um conceito que lhe é heterogêneo, e o fenômeno do riso sempre revela a súbita percepção de um desacordo entre o conceito e o objeto real que ele representa, isto é, entre o abstrato e o intuitivo”[4]. Agora ficou bem mais fácil entender, não é? Não?

Vamos nos deter ao final do enunciado:  o fenômeno do riso sempre revela a súbita percepção de um desacordo entre o conceito e o objeto real que ele representa. O que é o desacordo entre o conceito e o objeto real que o conceito representa? Recorrendo novamente a Groucho Marx, o conceito poderia ser “a principal causa do divórcio” e o objeto “real” que o conceito representa, “o casamento”.

O raciocínio é o seguinte: as pessoas se divorciam porque estão casadas, portanto, se não houvesse casamento, não haveria mais divórcio. Sendo assim, o casamento é a principal causa do divórcio. Lógico? Não, porque apontar o casamento como a causa do divórcio é um paradoxo.  Seria o mesmo que culpar a comida pela fome no mundo; ou dizer que só morremos porque estamos vivos. É o mesmo raciocínio do ditado popular que diz que “quem trabalha muito não tem tempo para ganhar dinheiro”. Por essa lógica, ganhar dinheiro não teria nenhuma relação com a remuneração salarial por um trabalho — bem, o ditado não está necessariamente errado, está?

Ainda segundo Minois, Schopenhauer explica a sensação agradável provocada pela descoberta súbita de uma incongruência “pelo fato de o riso residir numa confrontação entre a intuição e o pensamento abstrato, que se resolve pela vitória da intuição”. [5] Para Schopenhauer: “a intuição é o conhecimento primitivo, inseparável da natureza animal; nela é representado tudo o que dá satisfação imediata ao desejo; ela é o centro do presente, do regozijo e da alegria, e nunca permite um esforço penoso”[6].

A ideia de intuição como centro do regozijo e da alegria aproxima-se muito do conceito de ID na teoria freudiana: a parte de nossa psique interessada em satisfazer o prazer imediato sem medir as consequências. De forma similar Freud postula que nossa mente dificilmente renuncia a um prazer e, nesse sentido, o riso representa um caminho alternativo para encontrarmos a satisfação de um desejo reprimido.

Particularmente, gosto da explicação do filósofo alemão Theodor Lipps. Segundo ele, ao rirmos, “Aquilo que por um momento havíamos tomado como pleno de sentido mostra-se agora inteiramente sem sentido para nós. Nisso consiste, nesse caso, o processo cômico”[7] As frases espirituosas de Groucho exemplificam com perfeição essa análise: elas parecem fazer sentido de início, para logo em seguida, parecerem completamente absurdas, mas por um breve momento, ficamos na dúvida.

 Lipps prossegue em sua análise: “Emprestamos um sentido a um enunciado sabendo que ele não pode pertencer-lhe logicamente. Encontramos uma verdade nele que, no entanto, não podemos encontrar quando seguimos as leis da experiência ou os hábitos universais do nosso pensamento”. É o que acontece quando responsabilizamos o casamento pela causa dos divórcios, por exemplo. Emprestamos ao enunciado um sentido que sabemos que não lhe pertence; encontramos uma verdade, que contraria a experiência e os hábitos do nosso pensamento. A lógica da comédia, como já repeti inúmeras vezes, contraria o bom senso.

Lipps prossegue: “Nós lhe concedemos uma consequência lógica ou prática que vai além de seu conteúdo verdadeiro, para, tão logo enxerguemos a natureza mesma do enunciado, negar justamente essa consequência”. Analisemos a frase de Samuel Goldwyn, por exemplo: “Um contrato verbal não vale o papel em que está escrito.”. Ela contém uma contradição explícita: um contrato verbal não está escrito em lugar algum. No entanto, mesmo assim o enunciado parece fazer algum sentido. Por quê? Porque um contrato verbal, de fato, perdeu seu valor em um mundo em que vale o que está escrito. A comicidade está justamente na condensação de dois pensamentos contraditórios em uma única frase: “um contrato verbal não vale nada hoje em dia” e “o que vale hoje em dia é o que está escrito”. Sendo assim, enxergamos uma lógica que vai além do conteúdo verdadeiro do enunciado para em seguida, negarmos essa lógica aparente. A piada passou uma rasteira na lógica comum.

“Em cada caso, o processo psicológico que o enunciado do chiste desperta em nós, e no qual se baseia o sentimento de comicidade, consiste na passagem imediata daquele emprestar sentido, tomar por verdadeiro, admitir consequências, à consciência ou impressão de uma relativa nulidade.” O cômico está na passagem do “emprestar sentido ou tomar algo por verdadeiro” para a súbita consciência de uma relativa nulidade. Aqui, a teoria de Lipps se aproxima muito das teorias atuais sobre o riso que dizem que o processo de compreensão de uma piada comporta uma interpretação inicial (emprestar sentido) para uma reinterpretação menos importante da ideia inicial (relativa nulidade). Vamos analisar a frase do comediante Steven Wright: “Você não pode ter tudo. Onde você colocaria? A primeira parte da frase é um consenso, quase uma frase feita. Mas a sua conclusão parece absurda porque a ideia de não poder tudo ter está ligada aos limites do nosso desejo e não ao espaço que precisaríamos ter para guardar absolutamente tudo. A parte inicial do enunciado usa “tudo” no sentido figurado, mas a parte final usa a palavra no seu sentido literal e, sendo assim, “tudo” não cabe em lugar nenhum.

A percepção de incongruência como um estímulo minimamente necessário para todo tido de humor é a ideia mais aceita atualmente. Ela está presente em todas as teorias contemporâneas sobre o riso, como veremos a seguir.

[1] Martins, Daniel. Rir é preciso.

[2] Kant, Emmanuel. Crítica da faculdade de julgar.

[3] Minois, Georges. História do riso e do escárnio.

[4] SCHOPENHAUER, A. Le monde comme volonté et comme représentation. Trad. por BURDEA, A. Paris: 1966, livro I, cap.13, pp. 93-96.

[5] Minois, Georges. História do riso e do escárnio.

[6] SCHOPENHAUER, A. Le monde comme volonté et comme représentation. Trad. por BURDEA, A. Paris: 1966, livro I, cap.13, pp. 93-96.

[7] Theodor Lipps. Trecho extraído de Freud (1905) – Obras Completas volume 7